É comum ouvir expressões do tipo: "Ele(a) é ignorante!" ou "Quanta ignorância!" as quais são sempre dirigidas a alguém em estado nervoso e/ou agressivo durante uma discussão, por exemplo.
Mas.... quem chama o outro de ignorante sabe o que está dizendo? O que foi chamado de ignorante entende tal expressão? A que se atribui a ignorância?
Convido-os a ler o texto abaixo. Há respostas para todas essas questões e muito mais. Juntos podemos refletir e, quem sabe, mudar nosso conceito sobre IGNORÂNCIA!
Noêmia A. Lourenço
A FUNÇÃO DA IGNORÂNCIA
Bom dia a todos!
É bom estar aqui com vocês e, de alguma maneira, compartilhar um pouco das minhas elaborações feitas no grupo de estudos sobre as “Paixões do Ser: o Amor, o Ódio e a Ignorância”, coordenado por Ângela Lobato.
Quando iniciamos os estudos sobre o tema, abrimos um leque de leituras variadas e, no trajeto, fui apreendendo a amplitude desse assunto, tendo muito gosto em estudá-lo. Durante um ano e meio, estivemos envolvidas nesta dinâmica, iniciando os trabalhos com o estudo do amor, depois do ódio e, por último, da ignorância. Ocorreu-me o tempo todo, uma necessidade imensa de estudar a ignorância, por ser ela um dos pontos altos do meu trabalho como psicopedagoga, pois geralmente as queixas iniciais nos remetem a perturbações na aprendizagem que se configuram numa dificuldade em aprender, em atentar, em querer conhecer, entre outras.
Só que, no trajeto desse estudo, além do meu interesse como profissional, interessei-me pelo que se produz em uma análise. Em ambos os espaços, busca-se a produção de um saber, tendo como forças antagônicas o Real, registro da impossibilidade de simbolizar, e o Simbólico, conjunto de representações baseado em signos e significações que precisam o sujeito à sua revelia. Nesses contextos, o psicopedagógico e o psicanalítico, o que é que sustenta essa busca? Creio que o que sustenta essa busca é o desejo de realização como ser de ignorância, respectivamente, do sujeito do conhecimento e do sujeito do inconsciente. Falarei um pouco mais do sujeito do conhecimento e um pouquinho apenas do sujeito do inconsciente, no intuito de retratar aqui minhas questões durante o estudo.
Do ponto de vista psicopedagógico, o domínio do conhecimento abrange todo o saber codificado pela linguagem ou pelos gestos, permanecendo, no entanto, um domínio do saber que escapa ao conhecimento, a essência intransmissível do vivido. Ou seja, qualquer conhecimento contém uma parte do saber que permanece intransmissível.
Nesse sentido, um sujeito só aprende o que é conhecimento no outro e por si mesmo. Do outro não somente por que é o outro que detém o conhecimento, mas, sobretudo, porque, na aprendizagem, esse outro aceito pelo sujeito, como portador de um saber qualquer, inspira nele intenção e confiança em adquirir o conhecimento que ele porta. Também aprende por si mesmo, por procurar reorganizar, por meio de seus próprios recursos cognitivos e significantes, o conhecimento do qual ele recebe apenas fragmentos. Essa apropriação do conhecimento está longe de ser passiva: ela exige a organização operatória do código e a aquisição de regras pelas quais pode ser gerada a significação. Aprender a andar, a se servir, a falar, a fazer cálculos numéricos, são formas de transmissão de conhecimentos. A aprendizagem permite, portanto, transformar os reflexos em uma ordem de significação que possibilite integrá-los como valores. Essa ordem de significação muitas vezes possibilita aprendizagens assimiladas pelo conhecimento do sujeito sem alterar o sistema, mas estas, por outro lado, também podem entrar em oposição com esse conhecimento engendrando uma reorganização do adquirido anteriormente. Enquanto processo de conhecimento, a aprendizagem não somente é gerada pelo distúrbio, mas também o produz.
Logicamente, a ausência de conteúdos prévios consolidados é a causa e o efeito da historicidade humana. Dotada de recursos inteligentes que possibilitam a acumulação da experiência de geração em geração através da aprendizagem, a espécie humana instaura-se na historicidade, enquanto que os sujeitos tornam-se significantes do lugar histórico que eles ocupam no “processo de transmissão de conhecimentos”. Nesse processo, a aprendizagem pode ser ampliada situando-se entre os dois pólos, onde a transferência produz-se: de um lado, a instância do outro, aquele que é considerado capaz de saber; do outro lado, a instância do sujeito do conhecimento, que vai tornar-se sujeito exatamente por causa da transmissão, pois todo conhecimento, nem que seja o de um saber a ser negado, estabelece o assujeitamento do ser à cultura e sua alienação singular de construir a realidade humana.
Dito isso, o conhecimento não pode ser construído de uma só vez. Ele é obtido, por meio de uma elaboração conjunta entre aquele que ensina e aquele que aprende, num espaço onde seja possível veicular uma forma de saber. O conhecimento transmite-se, então, através de um ensino por traçar uma significação, que simultaneamente refere-se à estrutura inteligente e à estrutura simbólica, e que vai produzir nos sujeitos, a generalização que permite reconstruir o conhecimento de origem, provocando a identificação do sujeito com o ensinante, e, assim, tornando-se um transmissor.
O ensino, fatalmente, transmite o conhecimento de um modo parcial e descontínuo. A relação que há entre o ensino e o conhecimento que é veiculado é suficientemente indeterminada para permitir que a ignorância se introduza sutilmente no intervalo. Trata-se de insígnias que transmitem conhecimentos diferentes e até opostas àqueles que supostamente representam. A ignorância permite outorgar ao conhecimento transmitido um caráter absoluto e serve para aceitar o conhecimento como “a verdade”, aguardando o momento de poder avançar na compreensão. Dessa forma, os alunos admitem, à medida que se desenvolvem, que é possível, por exemplo, subtrair obtendo um número negativo, depois de terem ouvido durante anos que “não se pode diminuir nove de sete”.
Quando o ensino está relacionado a um conhecimento e este pode ser reproduzido, seu papel na transmissão de conhecimentos tem sucesso. Em contraposição, o conhecimento serve à ignorância quando o ensino é oferecido como sendo o próprio conhecimento, com um caráter absoluto que não permite a generalização e menos ainda a crítica. A identificação do conhecimento com quem o transmite é a base da produção da ignorância, pois é necessário, para garantir a apropriação do conhecimento, que o ensino seja generalizado, e que o mestre fale conforme uma lógica, uma coerência que não lhe pertence. O ensinante que atua como mestre absoluto de seu discurso e que faz os outros crerem, pode instaurar a ignorância como um problema.
Uma das maneiras de vencer um problema de aprendizagem é encontrar o papel que a ignorância exerce na vida do sujeito: trata-se de descobrir a função que representa o conhecimento na estrutura simbólica segundo a qual o sujeito é constituído. Em cada família, o conhecimento tem uma significação particular: Ele pode ser concebido como um atributo dos homens ou das mulheres, dos adultos ou das crianças, da incompletude ou da perfeição. Pode estar ligado a sentimentos de medo, de inveja, de competição, de impotência ou estar relacionado ao prestígio, a um segredo de família, ao fracasso. A ignorância só é interpretável levando em conta as significações inconscientes.
Em “Inibição, Sintoma e Angústia”, Freud (1925) aponta que a palavra inibição confere enfraquecimento a uma função, enquanto que a palavra sintoma confere uma transformação dessa função. Nesse sentido, considero importante diferenciar dois estados de ignorância que geram comportamentos de não-aprendizagem: a ignorância como inibição e a ignorância como sintoma.
A ignorância como inibição pode aparecer em casos limitados e ligados a situações pontuais. A não-aprendizagem pode corresponder a uma retração intelectual do “eu”(moi). Entendo, com isso, uma retração do inconsciente lógico que dá a imagem de um “eu”(moi) ignorante. Essa retração pode aparecer, segundo Freud, em três ocasiões: a primeira, quando os órgãos intervenientes na ação de aprender sexualizam-se; a segunda, quando o sujeito evita o sucesso, apresentando, no momento preciso de obtê-lo, um comportamento de fracasso de si mesmo. É preciso levar em conta que o saber está sempre submetido ao interdito; e a terceira, quando o “eu”(moi) requer toda a energia disponível, por exemplo durante o período de luto. A dificuldade de aprender parece estar ligada aí à falta de resignação das aprendizagens que representam a situação perdida.
Já a ignorância como sintoma se mostra como perturbações mais permanentes, geralmente representando uma relação patológica entre o sujeito e o conhecimento. Para Freud, também o déficit cognitivo pode compor um sintoma. Ele supõe, então, que houve um recalcamento prévio de um acontecimento cuja ação de aprender determina a significação substituída. Nesse caso, o sujeito pode manifestar duas reações inversas: uma obedece à pulsão da repetição da situação traumática, e a outra condiz à necessidade de evitar uma situação cuja cicatriz psíquica indica o perigo. Segundo Freud (1909), disso resulta que a perturbação da aprendizagem pode surgir como uma reação neurótica por causa da interdição da satisfação. Assim, tanto faz que o sujeito distancie-se da realidade e a procure no fantasma, ou que se fixe psicologicamente numa época em que era bem mais feliz. Os transtornos na aprendizagem geralmente aparecem como efeito secundário de uma perturbação psíquica e não como seu representante ou sua transformação simbólica.
É necessário acreditar, então, que a ignorância, no sujeito que aprende, representa seu modo de viver a relação com o “outro do conhecimento”, um jeito de resolver a alternativa dramática, posta já a Adão e Eva, entre o saber e a ignorância. Para ajudar o sujeito a superar sua perturbação, é preciso restituir ao conhecimento e à atividade cognitiva a alegria que foi pervertida sob a forma de ignorância.
Nas perturbações da aprendizagem, a compreensão simultânea do funcionamento da estrutura cognitiva e da estrutura do desejo permite descobrir sua articulação no sintoma, que comparece quando o funcionamento cognitivo foi captado pela estrutura simbólica e transformado numa metáfora referente à relação do sujeito com o conhecimento. Da mesma maneira que o funcionamento do organismo configura uma dramática específica no cenário inconsciente da histérica, as operações do pensamento podem chegar a alienarem-se como significantes daquilo que o outro interdiz ou permite ao sujeito saber.
Portanto, as perturbações da aprendizagem são formas de ignorância que afetam o desenvolvimento. Elas dependem daquilo que, no conhecimento, é vivido como ausência, mistério, insuficiência, segredo, inadequação, enigma. A edificação do conhecimento não se realiza ao caso, mas sobre o terreno que a ignorância designar-lhe com a obstinação do não-sentido. Poder-se-ia dizer, evocando um outro Zuyderzee, que lá onde era ignorância, conhecimento pode advir.
Do ponto de vista psicanalítico, Lacan, no Seminário I, fala de três paixões transferenciais, nas quais o ser se realiza: No Amor, articulando o Simbólico com o Imaginário, elidindo o Real; no Ódio, articulando o Real e o Imaginário, elidindo o Simbólico; e na Ignorância, articulando o Real e o Simbólico, elidindo o Imaginário.
Dessas três formas, a ignorância é, segundo Lacan, “a ação realizada pelo homem que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico, que nisto ele encontre mais ou menos imaginário, toma aqui valor secundário”. Ou seja, a ignorância abre espaço ao não-saber para que uma Psicanálise se opere, movendo o sujeito em direção à verdade de seu desejo, do saber elaborado.
A ignorância reconhecida e assumida por analista e analisando no âmbito analítico, constrói a transferência onde ambos também dizem sim ao inconsciente, um ocupando o lugar do suposto-saber e o outro querendo saber, articulando-se dialeticamente nas vias de acesso ao saber, nas quais o sujeito há de advir.
Nesta composição, ambos reduzidos e conduzidos por entre os significantes que se articulam como referências do Real e do Simbólico, são regidos pelo desejo de que um saber se produza no sujeito. Vivência conjunta de uma condição semelhante de ignorância, mas que se diferencia na medida em que um efeito de verdade comparece, produzindo no analista uma espécie de sublimação que o conduz a uma nova utilização desse efeito produzido, e, no analisando, uma experiência mínima de acesso ao saber. Acredito que Goethe, em “Fausto”, escreve algo que nos remete a esta experiência vivida entre analista e analisando, na qual a ignorância é a membrana que sustenta a possibilidade de vir a saber. Ele diz: O que foi, torna a ser. O que é, perde existência. O palpável é nada. O nada assume essência.”
O sujeito não produz o pensamento, mas não há nada no pensamento, que não seja sujeito, que não tenha o sujeito por tema. O pensamento deriva do fato de tornar presente o ausente, daí decorre uma dor proveniente da percepção do ausente e, um conseqüente trabalho de reconstrução do perdido. Passamos a vida toda buscando o que perdemos. O jardineiro trabalha com a planta e também trabalha com algo que está dentro dele. Os sujeitos do conhecimento e do inconsciente engendram o ser que, apaixonado, age, criando ou modificando a realidade. E, nesse ponto, concluo minha fala, remetendo-os novamente a Goethe, em “Fausto”, quando na Cena I do Quadro IV, escreve o seguinte:
“O que inda vale
como compensação, é esta ânsia inata
que nos ala o querer, do ínfimo escuro vale,
às altas regiões, onde a alma se dilata,
em comunicação co’o sobrenatural. [...]
(Abre a Bíblia no Evangelho de S. João)
No princípio era o Verbo. É esta a letra expressa;
aqui está... No sentido é que a razão tropeça.
Como hei de progredir? Há ’í quem tal me aclare?
O Verbo!! Mas o Verbo é coisa inacessível.
Se apurar a razão, talvez se me depare
para o lugar de Verbo um termo inteligível...
Ponho isto: No princípio era o Senso... Cautela
nessa primeira linha; às vezes se atropela
a verdade e a razão co’a rapidez da pena;
pois o Senso faz tudo, e tudo cria e ordena?...
É melhor No princípio era a Potência... Nada!
Contra isto que pus interna voz me brada.
(Sempre a almejar por luz, e sempre escuridão!)
... Agora é que atinei: No princípio era a ação.”
Ione Silva
Pedagoga
Psicopedagoga
Psicanalista – IPB
Brasília, outubro/2006
Fonte: http://www.interseccaopsicanalitica.com.br/int-participantes/ione-silva/funcao-ignorancia.doc